quarta-feira, 13 de julho de 2011

Ainda ontem pensava que não era

 
Ainda ontem pensava que não era
mais do que um fragmento trémulo sem ritmo
na esfera da vida.
Hoje sei que sou eu a esfera,
e a vida inteira em fragmentos rítmicos move-se em mim.
 
Eles dizem-me no seu despertar:
" Tu e o mundo em que vives não passais de um grão de areia
sobre a margem infinita
de um mar infinito."
 
E no meu sonho eu respondo-lhes:
 
"Eu sou o mar infinito,
e todos os mundos não passam de grãos de areia
sobre a minha margem."
 
Só uma vez fiquei mudo.
Foi quando um homem me perguntou:
"Quem és tu?"
 
Kahlil Gibran

Amai-vos...

 
Amai-vos um ao outro,
mas não façais do amor um grilhão.

Que haja, antes, um mar ondulante
entre as praias de vossa alma.

Enchei a taça um do outro,
mas não bebais da mesma taça.

Dai do vosso pão um ao outro,
mas não comais do mesmo pedaço.

Cantai e dançai juntos,
e sede alegres,
mas deixai
cada um de vós estar sozinho.

Assim como as cordas da lira
são separadas e,
no entanto,
vibram na mesma harmonia.

Dai vosso coração,
mas não o confieis à guarda um do outro.

Pois somente a mão da Vida
pode conter vosso coração.

E vivei juntos,
mas não vos aconchegueis demasiadamente.

Pois as colunas do templo
erguem-se separadamente.

E o carvalho e o cipreste
não crescem à sombra um do outro. 
 
Gibran Kahlil Gibran -

quinta-feira, 7 de julho de 2011

(...)

" Resultados? Mas é claro que eu já consegui um monte de resultados!
    Hoje eu sei de mil coisas que não funcionam."  Thomas Edison

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Plebiscito --- Arthur Azevedo


 Cena passa-se em 1890.

A família está toda reunida na sala de jantar.

O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.

Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.

Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.

Silêncio


De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:

— Papai, que é plebiscito?

O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.

O pequeno insiste:

— Papai?

Pausa:

— Papai?

Dona Bernardina intervém:

— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.

O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.

— Que é? que desejam vocês?

— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.

— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?

— Se soubesse, não perguntava.

O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:

— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!

— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.

— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?

— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.

— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!

— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...

— A senhora o que quer é enfezar-me!

— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!

— Proletário — acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.

— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!

— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!

— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.

O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:

— Mas se eu sei!

— Pois se sabe, diga!

— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!

E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.

No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...


A menina toma a palavra:

— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!

— Não fosse tolo — observa dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!

— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.

— Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito!

Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:

— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.

O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente.

Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.


— É boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio — é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...

A mulher e os filhos aproximam-se dele.

O homem continua num tom profundamente dogmático:

— Plebiscito...

E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.

— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.

— Ah! — suspiram todos, aliviados.

— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...

Arthur Nabantino Gonçalves de Azevedo, nascido em São Luís do Maranhão a 07 de julho de 1855, é uma das grandes figuras do humorismo brasileiro. Foi jornalista, comediógrafo, contista e poeta. Em toda sua obra campeia um fino e gracioso humorismo. Autor dos "Contos Possíveis", "Contos Efêmeros", "Contos fora de moda", "Contos em verso", "Contos Cariocas" e "Vida alheia", espalhou também sua verve em dezenas de revistas teatrais e de esfuziantes comédias, entre as quais sobressaem "O Dote", "A Almanjarra", "A Véspera de Reis", "O Oráculo", "Vida e Morte", "Entre a Missa e o Almoço", "Entre o Vermute e a Sopa", "Retrato a Óleo" e "O amor por Anexins". Trabalhou nos principais jornais da época, no Rio de Janeiro, tendo fundado e dirigido "A Gazetinha", "Vida Moderna" e "O Álbum". Membro fundador da Academia Brasileira de Letras, em que ocupou a cadeira n. 29, para a qual tomou Martins Penna como patrono, faleceu no Rio de Janeiro a 22 de outubro de 1908.

Texto extraído do livro “Contos fora da moda”, Editorial Alhambra – Rio de Janeiro, 1982, pág. 29.

Suje-se Gordo! --- Machado de Assis.


UMA NOITE, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço do Teatro de São Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu.
— Fui sempre contrário ao júri, — disse-me aquele amigo, — não pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar alguém, e por aquele preceito do Evangelho; "Não queirais julgar para que não sejais julgados". Não obstante, servi duas vezes. O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira da Conceição.

Tal era o meu escrúpulo que, salvo dois, absolvi todos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dois processos eram mal feitos. O primeiro réu que condenei, era um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda, os olhos mortos, com tal palidez que metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada.

Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a circunstância de ser a estréia dele na tribuna. Parentes, colegas e amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu dois anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele!  Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando. Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do Conselho, que era eu.

Não digo o que se passou na sala secreta; além de ser secreto o que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor ficasse também calado, confesso. Contarei depressa; o terceiro ato não tarda.

Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinqüente. O processo foi examinado, os quesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivo estava quieto. No fim, como os votos assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de fraqueza, ou coisa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente o que votara pela negativa, — proferiu algumas palavras de defesa do moço. O ruivo, — chamava-se Lopes, — replicou com aborrecimento:

— Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado.

— Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo.

— Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo!

"Suje-se gordo!" Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que entendesse a frase, ao contrário; nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do Conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.

Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-me entendê-la.
"Suje-se gordo!" era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada. Achei esta explicação na esquina da Rua de São Pedro; vinha ainda pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele; não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor. Assim são as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos versos.

Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.

Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado, o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso, que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus, Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci; pareceu-me ver o meu colega daquele julgamento de anos antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes.

— Como se chama? perguntou o presidente.

— Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.

Já me não lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências; não me tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe aqui com verdade que todas essas circunstâncias me impediram de acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas coisas me escaparam. Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim.  Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos da boca.

Seguiu-se a leitura do processo. Era uma falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se descobriu o crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me impressionou muito, o inquérito, os documentos, a tentativa de fuga do caixa e uma série de circunstâncias agravantes; por fim o depoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o teto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros.

Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes, os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito.

Enquanto os dois oradores falavam, vim pensando na fatalidade de estar ali, no mesmo banco do outro, este homem que votara a condenação dele, e naturalmente repeti comigo o texto evangélico: "Não queirais julgar, para que não sejais julgados". Confesso-lhe que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a cometer algum desvio de dinheiro, mas podia, em ocasião de raiva, matar alguém ou ser caluniado de desfalque. Aquele que julgava outrora, era agora julgado também.


Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de repente a do mesmo Lopes: "Suje-se gordo!" Não imagina o sacudimento que me deu esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que lhe ouvi na sala secreta, até àquelas palavras: "Suje-se gordo!" Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. "Suje-se gordo!" Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!

Idéias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer-lhe aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu o desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos, uma carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram comigo dois jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. A diferença da votação era tamanha, que cheguei a duvidar comigo se teria acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repelões de consciência. Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime, não recebeu a pena do meu voto, e esta consideração acaba por me consolar do erro, mas os repelões voltam. O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado. Suje-se gordo! suje-se magro! suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não julgar ninguém... Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras.

Texto extraído do livro “
Antologia do Humorismo e Sátira”, Editora Civilização Brasileira – Rio de Janeiro, 1957, pág. 98, uma seleção de R. Magalhães Júnior.

Professor analisa polêmica sobre variações linguísticas em livro do MEC


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A distribuição do livro Por uma Vida Melhor pelo Ministério da Educação (MEC) para o programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA) causou polêmica na sociedade, por trazer em seu conteúdo, além do português culto, questões como as variações linguísticas – variantes sociais da língua que não seguem a gramática normativa, mas o contexto social de origem. Na obra, são usadas frases como “nós pega o peixe”, com a explicação de que “na variedade popular, basta que a palavra ‘os’ esteja no plural”, pois “a língua portuguesa brasileira admite esta construção”.
 Os defensores da norma culta criticaram a publicação da obra, justificando que o livro incentivaria alunos a praticarem erros. Contudo, o que o livro apresenta são concepções da sociolinguísticas – subárea da linguística que estuda a variação da língua e o seu funcionamento social – e alerta para a existência do preconceito linguístico. 
Diante da polêmica em torno dos supostos “erros”, o professor Cosme Batista dos Santos, professor do Campus III da UNEB, em Juazeiro, e doutor em linguística aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, São Paulo), esclarece que, na concepção da sociolinguística, “não existe linguagem errada ou correta, existe linguagem que se usa em uma situação e em outra não”. Assim, é necessário compreender o conceito de certo e errado, e inserir na escola o ensino das variações linguísticas.
Para o professor, os meios de comunicação fizeram uma interpretação errada da obra. “o livro não fala de ‘erro’, quem evidenciou a questão do ‘erro’ foi a mídia. Ele não afirma, por exemplo, que falar errado é certo. A obra fala que é correto falar de certo modo em uma situação, mas que, em outras situações, é melhor falar de outro modo, ou seja, desconstrói e relativiza a noção de certo e errado na linguagem”.
A seguir, íntegra da entrevista concedida pelo docente à Agência MultiCiência, do Campus III da UNEB, em Juazeiro.

MultiCiência – Parte da sociedade acredita que o MEC defende que alunos sustentados pela sua variação linguística podem falar “errado”, mesmo em sala de aula. Qual a justificativa da sociolinguística como ciência a respeito do que é a variação da língua e sua relação com a norma culta convencional?

Cosme Batista – A sociolinguística vai explicar que certas estruturas da linguagem popular têm uma razão de ser, têm uma função e não é à toa que elas existem. A nossa linha é trabalhar com o relativismo linguístico, considerando que não existe linguagem errada ou correta, existe linguagem que se usa em uma circunstância e em outra não. O que a escola tem que fazer é assumir que tem uma heterogeneidade cultural em seu ambiente, sem abrir mão de ensinar a escrita padrão, o dialeto culto, pois é através da leitura e da escrita que o aluno tem acesso a outros conhecimentos.

MultiCiência – Na obra, ressaltou-se a substituição da classificação certa ou errada por adequada ou inadequada, a depender da situação. O que se entende por erro ou norma adequada?

Cosme Batista A tarefa da escola não é apenas corrigir qual o certo e qual o errado, mas tentar estudar e explicar porque certas estruturas são consideradas erradas e porque outras são consideradas certas. Quais as relações de poder envolvidas? Por exemplo, se um aluno de determinada comunidade vai à escola e aprende que o correto é o dialeto padrão e que os outros são errados, ele pode chegar à sua comunidade discriminando o dialeto de seus pares, por exemplo, o dialeto dos idosos de tradição oral. Eu tenho depoimento de aluno que passou a vida escutando as histórias contadas pelos pais e avôs e que, após a escolarização, deixou de escutá-los, por não dar mais valor àquela linguagem. Por isso, a escola deve permitir que o aluno aprenda o saber escolar, respeitando o seu saber, a sua língua e a sua cultura, porque isso também é conhecimento.

MultiCiência – Por que a sociolinguística admite a construção “os menino pega o peixe”, presente no livro? Em que circunstâncias a aplicação dessa oração fere a norma culta da língua portuguesa e deve ser “corrigida”?

Cosme Batista Olha, para William Labov, pai da sociolinguística, a estrutura está correta. Ele diz até que é mais correta do que dizer “os meninos”, por conta da  redundância  gerada pela dupla flexão “os” e “meninos”. Ou seja, é uma dupla flexão, desnecessária. Quando um usuário fala “os menino”, ele está simplesmente reduzindo e apagando uma redundância que aparece em “os meninos”. Em alguns casos chega a ser mais grave como na expressão: “os meninos jogam”. Nessa expressão, você tem uma dupla redundância. Então, a sociolinguística vai explicar que essa estrutura não é errada e pode ser legitimada, assim como se legitimou a norma padrão correta. Então, são dois usos possíveis.

MultiCiência – Um conceito que, apesar de não ser novo, é a expressão preconceito linguístico. Como ele afeta a vida social de um aluno?

Cosme Batista – Um aluno de certa zona rural, por exemplo, sofre preconceito linguístico quando ele não é convidado a falar na escola. O aluno leva um conhecimento prévio para a sala de aula, um saber rico, no entanto, não é convidado a compartilhar essa experiência com os colegas e com a escola. O segundo é quando ele é convidado a falar, porém é corrigido de imediato antes de terminar sua história, antes de falar do seu mundo e de si. Ele também sofre um preconceito linguístico quando a escola, mesmo sabendo que ele tem um dialeto diferente do padrão escolar, não se esforça para poder proporcionar para ele outro dialeto. Isso também é um preconceito porque a escola não soube compreender a relevância dessa comunicação intercultural, ou seja, ela não deu possibilidades para que ele pudesse ter uma forma de deslocamento, a apropriação de um novo saber e de seu uso, como uma forma de empoderamento.

MultiCiência – Como um professor, em sala de aula, deve se posicionar quando um aluno expressar “os caderno rasgou”?

Cosme Batista – Concretamente, a escola escuta o aluno e fala: eu entendi o que você está falando, porém, se você continuar falando desse modo, tem gente que não vai lhe escutar. Nesse caso, a escola vai entrar com o conhecimento da flexão gramatical padrão para que o aluno possa se deslocar e potencializar a sua fala. Nesse caso, a escola reorientou, ampliou as possibilidades, fortalecendo o aluno para falar em diversas situações.

MultiCiência – E se, em uma avaliação de língua portuguesa, o aluno escrevesse “os carro é azul”, como um professor avaliaria essa questão? O aluno seria corrigido pela gramática normativa ou a variação linguística prevaleceria?

Cosme Batista – Quando a escola elege que “nós vamos” é o correto, e o aluno usa “nós vai” em uma avaliação, por exemplo, ele será cobrado pelo padrão escolar. Mas ele estará errado não porque utilizou “nós vai”, mas porque ele não usou o padrão escolar. É aí que reside a diferença entre o errado e o inadequado. O inadequado é quando o aluno tem consciência que já aprendeu que, naquele contexto, o uso é aquele e, no entanto, ele não usou o que foi ensinado para ele. O que é diferente de quando você diz que não se pode falar “nós vai”, porque isso cria um silenciamento cultural e linguístico. É como se a escola dissesse para o aluno: eu só vou lhe escutar quando você disser “nós vamos”, porque “nós vai” não é correto. Ideologicamente é um silenciamento: não me conte a sua história, não me conte quem você é, o que você faz. Assim, a escola apaga a oportunidade de conhecer o aluno e a sua história.

MultiCiência – Como o professor pode trabalhar a gramática normativa e a variação linguística em sala de aula?

Cosme Batista – A sugestão é tratar a língua como objeto de estudo e investigação, ou seja, se eu quero proporcionar para o meu aluno o aprendizado das variações linguísticas, é importante que eu faça isso como trabalho de investigação. Então, uma coisa que eu proponho é que o aluno, a partir de sua inserção multicultural, seja capaz de escutar as narrativas dos idosos da sua comunidade. As narrativas dos idosos vão aparecer como uma variação dialetal, presente no cotidiano de determinada comunidade. Quando o aluno vai conhecendo essa variante, como investigador, ele tem duas conquistas: uma é que ele aprende a lidar com a variação dialetal, uma maneira particular de conhecer e explicar o mundo; a outra é que ele vai passar a estudar a razão de ser daquela variante linguística a partir do padrão de escrita da escola. Assim, é possível que ele entenda como aquela narrativa popular tem sentido. E para que ele possa compartilhar essa conquista, ele precisa estudar, na própria escola, o que é uma narrativa, quais os seus padrões, quais as suas estruturas, além de poder ler e escrever no português padrão um pouco sobre aquilo que ele viu, ouviu e sentiu.

MultiCiência – Por que é importante professores e até livros abordarem as variações linguísticas em sala de aula?

Cosme Batista – O livro didático, assim como a educação de jovens e adultos, precisa ser culturalmente relevante. E o que seria um livro didático culturalmente relevante? É aquele que conhece profundamente para quem se destina o seu conteúdo, quem é o seu leitor em sala de aula. Quando um livro didático coloca para um aluno que falar “nós vai” não é errado, a obra estará apenas materializando uma relação que, em minha opinião e de muitos sociolinguístas, é uma relação de respeito com o dialeto popular e, consequentemente, com o próprio povo. O livro não pode negar ao aluno o direito de valorizar o seu dialeto e, ao mesmo tempo, o direito de aprender outras variantes da sua própria língua.

MultiCiência – Como o senhor avalia a função dos meios de comunicação, eles ajudaram a esclarecer a temática ou reproduziram preconceitos?

Cosme Batista – O que está caracterizado é uma enorme ignorância sobre o assunto. O material foi mal interpretado. O próprio livro não fala de “erro”, quem colocou a questão do “erro” foi à mídia. Ele não afirma, por exemplo, que falar errado é certo. A obra fala que é correto falar de certo modo em uma situação, mas que, em outras situações, é melhor falar de outro modo, ou seja, desconstrói e relativiza a noção de certo e errado na linguagem. O ensino da variação linguística é um conhecimento científico como qualquer outro. O aluno que está na idade escolar também tem o direito de saber quais são as descobertas científicas da linguística e não ficar o tempo todo decorando as normas da gramática normativa, como se isso fosse potencializar os seus usos mais competentes da língua e do conhecimento. E a gente chegou a um estágio de descoberta sociolinguística que nos permite dizer com segurança que “nós vai” não é errado, é apenas inadequado para algumas situações.

Fonte: Agência MultiCiência texto: Michelle Laudilio; foto (home): Emerson Rocha